Crônica - Vão-se os dedos - Parte II


Era aquele sono gostoso de início de dia, de uma noite bem dormida e de uma linda manhã que se anuncia tímida pelo frio do inverno e sequer foi notada por quem ainda se encontra no mundo dos sonhos, longe do peso matinal da carne, da fome do desjejum e das dúvidas que irão vir. Pouco importa se o sonho foi bom, ou ruim, ou ao menos se houve um lampejo de fantasia, o que importa é o descansar das pernas encolhidas, do cobertor bem enrolado ao corpo e do travesseiro abraçado ao rosto. Nathicana se entregava por completo a aquele sono. Acordara antes do sol nascer, olhou o quarto escuro, bebeu da água que guarda para um certeiro ataque de sede na madruada, no criado mudo, ao lado direito de sua cama de casal.

Suspiro. Espreguiça. "Mais uns minutos, depois me levanto".

- Madame! Madame, acorde!

A realidade vem como um martelo aos ouvidos da moça. A governanta Ester a chama compulsivamente, chegando a sacudi-la, de leve, para apressar-lhe o despertar. A grande serviçal, com seu busto enorme, cabelo grisalho preso em coque, ancas largas e simpatia germânica, estava visivelmente animada esta manhã. Tinha Nath como filha, e como se fosse mãe, preparou uma bela bandeja de frutas, sucos, leite, pão e queijo, bolachas, patês, biscoitos e um bolo que cheirava a infância e se espalhava pela casa toda.

- Vamos, madame, acorde! Quero saber o que irá usar esta noite.
- O que foi, Ester?
- Já é dia, trouxe seu desjejum, vamos, levante.
- Calma Ester, para que isso tudo?

Nath se ajeita na cama, senta de costas para a cabeceira e ajeita um dos travesseiros para servir de apoio. Estica a perna, endireita a camisola e olha a coberta mal estendida sobre o corpo e lamentando, como a própria moça, pelo resto de sono matinal desperdiçado. Ester auxilia a moça a se indireitar na cama, cobre-lhe as pernas, firma os panos na cintura da jovem, e de um jeito muito mais estrovertido do que de costume, fala e fala, enquanto coloca a bandeja sobre a jovem, firmando o café da manhã sobre as pernas demadeira da pequena mesa, colocada sobre a cama.

- Quero saber que vestido vai usar esta noite, estou tão empolgada, achei suas luvas, uma branca, uma azul e uma preta, seu cachecol, preparei suas jóias, escolhi alguns aneis, brincos combinando, chamei senhorita Carlson para ajudar a fazer um penteado...

Nathicana começou a comer e desligou a audição, ignorando as palavras da governanta.

-... a senhorita vai ficar linda, toda brilhante com a maquiagem que trouxe da França, uma beleza, posso até ver, nossa se eu fosse jovem e bonita como a senhorira, ai, ai, tenho certeza que desta vez a madame conegue um pretendente.

A moça desperta com o comentário da governanta: "Ester!"

- O que? Não estou falando mentiras, estou?
- Mas você diz como se eu fosse uma solteirona beata.
- Pois saiba, que se continuar assim, vai ser, e acaba como eu, gorda, velha e feia.
- Não fala assim, soube que Willian Wooder arrasta um bonde por você.
- Sério? Mas isso não importa, o importante é o seu vestido para o baile de hoje, qual será? Diga, Nath, qual escolhe?
- Tudo bem, Ester, o azul. Eu vou com o azul.
- Ah, vai ficar linda, e vai arrumar um marido!
- Ester, você está ficando atrevida.
- Eu sei.

A jovem terminou seu café e ouviu mais tagarelisses da governanta, histórias sobre maridos, família e filhos, coisas que Nath nunca parou para se preocupar. Mas talvez seja uma verdade, talvez estivesse desperdiçando um tempo precioso e deixando de encontrar alguém. Mas isso não era pensamento para agora. A jovem se vestiu e cruzou o corredor, descendo as escadas, ganhando a sala e indo até a cozinha. "Ester, temos correspondências?"

- Temos sim, coloquei sobre o cesto, ao lado do forno.

Neste local havia um envelope de cor parda, cujo remetente era Christopher Mateus, de Londre. "Nossa, Chris", a surpresa era boa, seu amigo não lhe escreve ou visita há tempos e suas tardes de discussão científica regadas a chá deixaram muitas saudades. As palavras da carta não diziam muita coisa, mandavam lembranças, remetem a saudade, mensionam o pai de Nath, pergunta como a moça e a casa estão, conta trivialidades sobre a Universidade e sobre o Museu: "...isso aqui está muito interessante, difícil de acreditar, é como se estivesse em uma chuva e os pingos fossem teorias históricas, estudos e mais estudos. Todos agora querem disputar uma vaga no museu, e eu tenho o melhor cargo de todos. Largue essa mania de estudar medicina, volte-se novamente para história, venha trabalhar comigo aqui em Londres, deixe essa vila de demagogos retrógrados e venha para a modernidade, minha querida. Olhe só o que chegou às minhas mãos... uma carta de James Taylor, está em anexo. Leia e depois disso me diga que a história não lhe atrai. Abraços de muita saudade, de você de seu pai".

Nath lê a carta e contém as lágrimas enquanto vira a última folha que contém uma cópia de uma carta de Taylor, que dizia:

Por mais incrivel que pareca, as inscricoes se mostram feitas antes da formacao das montanhas. Os dobramentos da rocha separaram ou mesmo suprimiram as escrituras gravadas na rocha, chegando ate a deixar alguns dos simbolos irreconheciveis. É notório que toda a montanha maior foi formada por atividade vulcânica intensa, mostrando que esta é, ou foi, uma região sismicamente instável. Para analisá-la de maneira mais eficaz deverei antes chamar Peter, que entende mais disso que eu.

Mas o que mais me impressiona são os objetos que desenterramos a algumas jardas das escrituras que encontramos. Eles não são contemporâneos das inscrições, e ao meu ver são mais recentes, talvez tenham 2 ou 3 milênios de idade, o que me leva a crer que existam vestígios de segunda e, se eu não estiver enganado, uma terceira civilização também.

Por que tantos povos, em épocas tão diferentes viriam habitar uma região tão inóspita como esta? Jack me disse que essa área nunca foi produtiva, nunca teve caça ou pesca abundantes ou mesmo água para uma grande população...

As inscrições chocam com os objetos encontrados mas ainda procuraremos mais. Em uma semana de pesquisas teremos mais perguntas do que quando achamos aquele sitio em Ruanda. Eu ainda não consegui traduzir nenhuma das mensagens inscritas nas rochas, mas minha equipe e eu teremos uma ideia do que se trata em algumas semanas, com certeza.

Encontramos muitos desenhos de sol, lua, luzes. Provavelmente os povos que habitaram essa região em diferentes tempos tinham em comum essa adoração aos astros e a luz. Talvez existam mais de uma divindade, e provavelmente elas são baseadas nos elementos naturais mais simples como o sol e o seu calor, o vento, a lua, a chuva... mas ainda é muito cedo para afirmar alguma coisa.

Nao preciso lembrar que esse material e confidencial, preciso? Claro que não. Um abraco.
James Taylor Jr.

Nathicana fica confusa... a carta data de aproximadamente um ano atrás, e o professor dito Taylor, que saiu pelo jornal, fora sequestrado e depois encontrado morto, há no máximo seis meses.

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