Epílogo de aventura - A água do poço (Parte 3)

Linus parou a carroça e desceu. Foi caminhando pelo acampamento até a primeira barraca, de panos e lonas vermelhas, cor de sangue e vinho. Os tecidos balançavam ao vento e Zandro ficou na carroça, controlando Tomás, o burrico. Caminhando lentamente, puxou a abertura e entrou na cabana. Ficou lá alguns segundos e saiu, dizendo que estava vazio. Zandro sugeriu fiscalizar tudo, até achar alguém ou algo que explicasse tal situação. A estranheza começava a ser substituída por preocupação, pois o silêncio era assustador.

Nenhuma das cabanas estava habitada. Pertences, dinheiro, equipamentos, tecidos e alimentos estavam dispostos como se tudo estivesse preparado para o desjejum e a ida à cidadela. Perplexos, os dois resolveram imediatamente seguir ao outro portão, o mais rápido possível para saber o que ocorria. O medo não rondava os rapazes. Eles nunca temeram nada e não seria agora a data para se apavorar. Aproximaram-se e viram mais um acampamento, um pouco maior, mas com as mesmas características, inclusive o abandono. A guarita também vazia e o portão também fechado. Linus, preocupado, começa a raciocinar o que poderia ter acontecido, mas Zandro se antecipa:

- Linus, vamos entrar! Não sei como, mas vamos entrar agora!

Linus observava. Não sabia o que fazer, mas concordou com seu primo-irmão. Era preciso, quase obrigatório. Os dois então voltaram ao acampamento e se equiparam com cordas, ganchos e cada um com uma adaga. Amarraram as cordas nos ganchos que foram lançados por sobre o muro por Zandro. Verificaram se estavam bem presas e começaram a subir. Zandro elevou-se rapidamente e viu que Linus não conseguia acompanhá-lo e sugeriu, então, que ele o esperasse. Do outro lado, abriria o portão.

Assim foi feito. Zandro pulou o muro e, ainda na guarita se assustou. Vira algo indescritível, impossível e inacreditável, mas correu a liberar passagem a Linus. Desceu pela corda que havia usado para escalar e ao chão puxou as alavancas que travavam a grande porta de madeira reforçada com ferro e bronze.

Vagarosamente, a grande porta se abriu e logo surgiu espaço suficiente para a passagem de Linus, Tomás e a carroça, que avançaram apressados. Dentro, os três vislumbraram a visão aterradora do presente de Ámagon. Linus e Zandro, boquiabertos, se perguntaram: Como? E Tomás se recolhia à sua condição de burro, alheio a todo aquele desastre.

Tudo, todos na cidade, tudo que anda e pensa, todos estavam parados, imóveis, petrificados. As pessoas como costumeiramente se portavam, comprando, vendendo, andando, sentando-se, vigiando, guardando, tossindo, caindo, rindo, levando seu animal ao passeio. Todos formavam um estranho quadro pintado com uma tinta incomum, formando uma tenebrosa obra de arte. Provavelmente malévola e possivelmente diabólica. Não havia motivos ou modos. Por quê?

Os dois amarraram Tomás a um coxo e seguiram a pé. Espantados, perceberam que ninguém havia percebido nada. Todos foram pegos ou simplesmente transformados ao mesmo tempo, conservando suas feições e atitudes. Os poucos movimentos que perceberam foram de alguns animais: cães, galinhas, porcos e pássaros que passavam ou estavam ali por conta da feira. E durante as andanças viram tia Diana petrificada enquanto estava a comprar um gládio, presente para o sobrinho. Eles se lamentaram e choraram. Clamaram por ajuda e chamaram o nome de Thudor, mas em vão. Nada ocorreu e a única coisa que os atingiu foi o silêncio do ar.

Linus e Zandro ficaram na cidade por dias. Andaram e tentaram achar alguns sobreviventes como eles, mas sem sucesso. Tristes começavam a se conformar com a condição da tia, morta, ou simplesmente congelada, mas ainda restava descobrir quem fez aquilo, como fez aquilo e por quê? Provavelmente tudo ocorreu magicamente, mas nenhum deles entendia sobre magia. Mal sabiam ler.

Por que Thudor haveria de permitir tamanho desastre? O que a cidade, ou até mesmo o Reino de Ámagon teria feito para ser punido daquela maneira? Os jovens não possuíam sequer pista dessas respostas e após uma semana de desespero calado, decidiram viver em função deles mesmos e achar o responsável por aquilo. Os alimentos estavam perfeitos. O dinheiro, o queijo e os legumes prontos para o consumo. A cidade estava à disposição e eles pegaram a cidadela para si, com todos os seus recursos, mas sem nenhuma pessoa. Levaram tia Diana carregada até a guarnição da cidadela e a colocaram no local mais protegido possível. Coletaram dinheiro e equipamentos. Roupas, das mais variadas. Vestes para passeio, festas, dia-a-dia, excursões, explorações e nobreza. Forraram a carroça, colocando uma lona parda com armação de madeira. Então Zandro, ao final de toda coleta e preparo pensou consigo e anunciou:

- Armas! Eu quero armas.

Linus, já um pouco recuperado do amortecimento provocado pela visão dos últimos dias concordou:

- Vamos à guarda. Retiraremos seus melhores trajes de guerra e armamentos. Nos fortaleceremos e seguiremos como fortes guerreiros.

- Não! Linus, este é o maior e mais poderoso reino de toda a vasta terra de Leigor. Dentro do palácio deve estar todos os pertences dos maiores guerreiros de Ámagon. Inclusive os do próprio rei Melior. São essas as armas que desejo. – afirmou Zandro com olhar compenetrado e sublime.

Linus não tinha argumentos para convencê-lo do contrário e lançou o desafio: “Consigo armas melhores que as suas”.

Os dois seguiram até o palácio central. Um prédio tão grande quanto uma cidade. Sua imponência e poder, contam os bardos, vislumbravam os maiores nobres, os mais ostentosos ricos e os mais poderosos guerreiros. Os corredores e salões foram pisados pelos simples camponeses e as sedas serviram-lhes como cobertas, suas porcelanas como pratos. A comida real foi experimentada e aprovada. Linus e Zandro demoraram quatro guiando-se no prédio como ratos perdidos em um barco naufragando.

Certamente, nunca esperariam ver tanta riqueza e imponência. As paredes de pedra hermeticamente encaixadas deixavam imperceptíveis as massas de rejunte. De cor clara, auxiliavam na iluminação e algumas possuíam cobertura de massa de barro e cal, alisadas e pintadas. Esses ambientes, geralmente eram destinados à alimentação, reuniões ou preces a Thudor. As cozinhas eram equipadas com mesas gigantescas de madeira polida e envernizadas, sempre com oito cadeiras ao seu redor e nunca com mais de quatro mesas por ambiente. Nas laterais, estantes e prateleiras com pequenos ornamentos e jarros de água e vinho, feitos de cobre ou prata, quando em regiões de convívio mais elevado. As janelas de quatro folhas eram planejadas para realizar dois tipos diferentes de abertura e revelavam, sempre, uma bela visão da cidadela, seus jardins ou colinas ao longe. As salas de reunião tinham estantes de livros, prateleiras com papiros enrolados e mapas, cadernos e algumas vezes um instrumento, como uma flauta ou alaúde, e às vezes uma peça de prataria. No centro, uma mesa com dez lugares, forradas com bordados figurados, geralmente contando uma saga ou evento, e de dois a quatro castiçais, de cobre, prata ou ouro, dependendo de onde se localizava a sala, e sempre com cinco velas. Os salões de preces eram, realmente os mais enfeitados. Sempre com a imagem de Thudor e outras divindades maiores ou menores. Havia também pequenos bancos com acabamento luxuoso e encosto refinado, estofados com espuma e tecido. Tapetes confortáveis e macios e nas paredes tapeçarias sobre mitologias, guerras e líderes. Antigos reis, antigas cidades, antigas lendas. Os castiçais de teto, feitos em prata, as velas, de cor dourada e espessura incomum. Nas paredes, tochas, fixadas em ângulo mais baixo, evitando marcas nas tinturas e seus amparos, de metal brilhante e polido. Sempre é possível ver um balcão ou armários menores, baixos e de madeira escura, como todos os móveis. As estátuas divinas, sempre foliadas a ouro, quando não inteiriças de outro metal, nobre ou não. Os corredores do palácio, nos níveis superiores, sempre possuíam aberturas, como portas, que davam acesso a um corredor aberto ao céu, deixando a iluminação passar por inteiro, mas com portas que impediam seu acesso em caso de chuva ou outro. Entre cada abertura uma tocha para iluminar durante as noites. As escadas eram semicirculares, sem janelas, mas nunca compridas demais. Elas não continuavam por mais de um andar, não deixando, portanto, a sensação de aprisionamento para quem a vence.

Acima, os quartos dos nobres. Luxuosos e magníficos. Até esse ponto, Linus e Zandro estavam maravilhados com toda aquela visão. Não acreditavam em tamanha riqueza e concluíam que havia, realmente, motivos para os viajantes e nômades afirmarem que aquele era o mais poderoso reino já existente. Linus decidiu, como último dormitório, o quarto do rei, mas Zandro contestou:

- Por quê você o rei? E não eu?

- Porque tive a idéia primeiro, oras!

- Não senhor. Não é assim que decidimos as coisas... Prepare-se! – desafiou Zandro.

- Estou pronto. – respondeu Linus.

- Então vamos... Par. – Zandro.

- Ímpar... – Linus.

E os dois selecionaram seus números e lançaram seus dedos. Suspense? Não, ímpar. Linus é o vitorioso, que trata em comemorar de imediato:

- Eu sou o rei... O Novo Rei de Ámagon. E você, Zandro, será meu súdito. O único, mas console-se com Tomás. – Linus se vangloria.

- Não Zandro, a partir de agora, Lorde Zandro, o Senhor das Armas de Ámagon. Destemido guerreiro, audaz combatente. – retruca Zandro.

n(3)

Comentários

Postagens mais visitadas