Epílogo de aventura - A água do poço (Parte 1)

O olhar de soslaio era costumeiro... Tal qual o sol se levantava, as pupilas seguiam ascendentes enquanto se fingia dormir. Na cama do lado, o adversário também fingia estar dormindo, mas isso não importava, apenas tornava o jogo mais interessante e disputado. Na parede de madeira, pedra e barro, oposta à janela, uma pequena marca funcionava como um sinal de partida. O leve feixe solar surgia do alto e descia lentamente.

Duas camas preenchiam grande parte do quarto. Feitas de madeira, cordas de linhaça e feno, forrado por um saco de pano de algodão cru, ficavam opostas, dividindo suas respectivas paredes com baús de madeira velha e firme. No alto, as armações de madeira e palha que formavam um frágil telhado que solidário à fresta da janela, deixava passar por si parte da luz matinal. Em frente à janela, uma porta. Na verdade, somente o umbral que dá passagem aos fundos da casa simples e pequena. Após a abertura, a cozinha, que enfim dava acesso ao ponto de chegada da disputa que irá se iniciar em poucos instantes.

Acompanhando o progressivo caminho da luz, os olhos furtivos agora se mostravam afobados, aguardando o momento de saltar da cama. Seu adversário não mais fingia dormir e era visível o espírito da disputa envolvendo os competidores. A cada segundo, os corpos se colocavam em posição de salto e as paredes suspiravam de tensão ao sentir o calor se aproximar da marca. As cabeças levantadas, as cobertas já postas ao lado, pernas colocadas fora da cama deixando os pés quase ao alcance do chão, mas sem tocar, era a regra. Não se podia também sair pela direção do pé da cama. Somente das laterais. Os braços já arqueados, troncos avançados e, enfim, o pulo. Os dois se lançam simultaneamente em direção ao umbral da porta no momento em que um deles, pelo menos, achou que o sol tocou a marca. Os dois rapazes se empurram enquanto tentam passar pela abertura estreita para eles. Acotovelando-se, empurrando-se, formam um quadro cômico para um início de semana. Sem definição de vantagem, ambos passam e invadem a cozinha. Um empurrando uma cadeira e o outro saltando sobre a mesa passam, respectivamente, pela porta e pela janela. O tempo levado como vantagem pelo jovem que passou pela porta foi rebatido pelo atalho da janela. Os dois mais uma vez, juntos, se espremem para numa pequena passagem do coxo para lavar o rosto no balde. O primeiro é o vencedor e o derrotado deverá dar metade do seu pão do desjejum matinal ao vitorioso. Acotovelando-se mais e mais, o troféu, o pão, vale cada pancada. Até que o mais forte, Zandro, empurra o mais fraco, derrubando-o sentado. O conquistador implacável, o herói, leva as mãos à água e lava sua face, quase sublime, erguendo depois o braço direito em pose campeã dizendo: “Eis o seu campeão. O pão me pertence...”.

Linus, no chão, balbucia qualquer reclamação vã. Levantando-se, ainda observa seu primo-irmão se vangloriar da grande vitória conseguida na “Maratona do Pão”, como eles mesmos proclamam.

- Parem com isso vocês dois. – interrompe a cena Dona Diana, a tia dos dois. A senhora, com seus quarenta e poucos, se aproxima carregando alguns lençóis. Seu vestido velho e suas rugas marcadas pelo trabalho da vida montam o retrato da dificuldade em que aquela família vive. Trabalho do levantar ao cair do sol. Aliás, os dois rapazes devem se preparar logo para o inicio da labuta: buscar água, levar o queijo, o pão e um leitãozinho para a feira da cidade.

- Então, andem logo. – insiste a tia – Zandro, pare de se vangloriar e vá comer logo, vocês dois têm que buscar água no poço.

Linus lava o rosto também e os jovens voltam à cozinha em silêncio. Tia Diana entrou primeiro, enquanto facetas provocadoras e debochadas se provocavam antes de subir o degrau da casa.

- Vocês vão se machucar uma hora dessas! – pragueja a tia – Onde já se viu, dois marmanjos se empurrando como crianças pela casa... Semana passada vocês quebraram duas tigelas de barro e não me compraram outras, sem falar nas cadeiras, que já estão bambas por causa dessas apostas loucas que vocês fazem o tempo todo.

- Ah, tia... O que tem demais? – indaga Linus.

- É verdade, tia. Melhor brincarmos que brigarmos, não é mesmo? – completa Zandro – Além do mais, é importante o espírito de competitividade...

Dona Diana apenas balançava a cabeça lamentando-se de tamanha imaturidade. Ela sempre via os dois jovens como seus filhos. Criou-os desde pequenos, quando seus pais os deixaram. E cresceram rápido. O mais curioso era o fato deles terem nascido no mesmo dia, quase na mesma hora. E foram dezesseis anos de uma batalha difícil para garantir uma boa criação, difícil, mas prazerosa, quase sempre imprevisível. Não eram crianças normais, com certeza não. Crianças normais não faziam o que elas faziam, principalmente na fase dos dez anos. Tia Diana olha para o nada e se lembra das peripécias de seus meninos, como da vez em que foram até o caminho estreito de terra que levava ao poço de água e aprontaram o evento chamado depois de “arapuca dos gnomos”. A trilha era margeada por um mato alto, com plantas finas e resistentes. Zandro e Linus trançaram as folhas compridas, fazendo uma espécie de corda, e apostaram quantas pessoas iriam cair durante um dia inteiro. Ela ainda não sabe quantas pessoas realmente foram pegas na armadilha, muito menos quem ganhou a aposta, mas sabe que foram muitos e os dois eram os principais suspeitos, perseguidos um bom tempo, mas sempre afirmaram que tudo teria sido obra de gnomos e que brincaram no rio a tarde toda. Lembrou também de quando aprontaram com aquele gato preto, durante a procissão do deus Thudor. Eles passaram todo o dia preparando o animal. Juntaram um pouco de algodão, untaram com betume e fizeram uma tripa, forrando todo o rabo do gatinho. Durante a cerimônia eles colocaram o bichinho em uma caixa e esperaram a caminhada começar. Centenas de pessoas andavam pelas ruas de Ámagon quando eles colocaram fogo no gato e o soltaram no meio da multidão. Só se via aquele ponto flamejante se mover e gritar em meio às pessoas. Como o gato era preto, não se via o animal. A correria foi indescritível, a situação foi caótica. Por sorte ninguém morreu, mas muitos ficaram feridos, pisoteados pela multidão em pânico. Achavam que tinha sido um demônio que teria aparecido para acabar com a festa religiosa. Eles ficaram de castigo por três meses, porém, mais ninguém soube que foram os dois.

- Tia, a senhora está bem? – pergunta Linus, interrompendo as lembranças de Dona Diana.

- Claro... Claro. Andem depressa, vocês precisam buscar quatro baldes de água para mim e depois levar as coisas para a feira. – respondeu a senhora ainda aérea pelas lembranças.

Linus e Zandro comeram rápido ainda comentando sobre a maratona, mas não fizeram barulho e logo partiram a pé, pelo caminho de terra do poço carregando cada um dois baldes apoiados nas extremidades de um bastão resistente.

A caminhada durava cerca de cinco minutos. E seguiram calados até seu destino. Lá, Zandro coloca o primeiro balde na manivela, amarrando bem a corda na haste de cânhamo e o joga no buraco. Depois começa a puxar lentamente até que Linus o retira e coloca outro da mesma forma, até encher os quatro baldes. Todo dia é a mesma coisa e os dois detestam essa rotina. O silêncio não perdura muito e Zandro, pensativo se pronuncia:

- Linus! A Tia disse que estava precisando de peles para fazer casacos e vender na feira antes do frio, não é?

- É. – responde Linus.

- E para isso será preciso caçar alguns animais no bosque, não é!?

- É! – retruca novamente Linus.

- Tive uma idéia! Por que nós não vamos até o bosque e caçamos algum animal? Aposto que eu consigo um maior do que você. – conclui Zandro.

- O que é isso, Zandro? A tia precisa que a gente leve as coisas para a feira. Não percebe que, se por um acaso formos pro bosque, vamos nos atrasar, sua toupeira!? – briga Linus.

Eles prenderam os baldes nos bordões e Zandro fecha seu semblante. Caminha pela estreita abertura de terra, e balança a cabeça negativamente, resmungando, provavelmente difamando todas as gerações anteriores e posteriores de seu primo-irmão, mas Linus sabia disso, e não ligava. Normalmente, Zandro reclamava por alguns minutos e voltava ao normal. E assim se fez, instantes depois as reclamações acabam e a caminhada se acelera. Pelas árvores do caminho, eles observam despreocupados a paisagem até que Linus anuncia:

- Zandro! Ali... Olhe.

Como esperado, o primo-irmão automaticamente olha, encontrando sobre a base de uma árvore um pequeno esquilo. Ele analisa calmamente, como um observador sagaz os hábitos simples e rápidos do animalzinho, que pouco se movimenta entre a grama e a terra mal coberta pelas plantas. Linus completa sua fala:

- Se você pegar aquele roedor, eu busco água sozinho amanhã. Se for eu o vencedor, você se incumbe da tarefa. Aceita?

- Claro, perdedor. – diz Zandro sem nem mesmo olhar para seu companheiro e já se lançando à busca da caça. Os baldes de água caem ao chão quase se virando e por sorte não se perde a tarefa da manhã.

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